domingo, 1 de novembro de 2009

Ser um leitor.

O leitor tem fama de antipático. Lembro-me perfeitamente quando ia a uma festa cujas conversas eram monótonas e não me interessavam. Procurava ver se havia uma biblioteca e se encontrava um livro ou uma revista, distraindo-me no isolamento taciturno. Entretanto fui pego com a mão na massa: o pai de uma amiga minha tirou-me bruscamente o livro da mão e obrigou-me a participar da festa. O notório egocêntrico, monástico, isolacionista, em suma, esse bicho chamado leitor, foi obrigado a conviver em sociedade. O leitor é malvisto por parecer individualista demais, etéreo demais, fora deste mundo. Parece que vive em outro planeta. Todavia, isso não é completamente verdadeiro.

Alguém poderia dizer que numa terra de cegos, quem tem olho é rei. Mas essa lógica não se aplica ao nosso país. O leitor é acima de tudo discriminado pelos analfabetos e pelos iletrados. Numa terra em que não se valoriza a leitura e sim só a aparência dela, o leitor é considerado uma figura exótica, estranha, cuja linguagem é grega, para não dizer marciana.

Se não é confundido com uma criatura inútil, é uma persona non grata, porque pensa demais. Se ele compra livros em demasia, alguém pergunta: - Isso dá dinheiro? E se alguém tiver com um livro de mil páginas na mão, o tolo pergunta: - Você consegue ler tudo isso? Por que você não compra tudo resumido? Por vezes os iletrados, orgulhosos de sua ignorância, acham que o leitor compulsivo mente, porque a burrice é sinônima de inteligência. Ora, se os estúpidos desconhecem tudo o que é dito, logo, é porque não existe! Ao invés de passar por sábio, quantas vezes já perdi a conta por ter sido chamado de “mentiroso”, só porque o resto da patuléia nem conhecia nada do que eu dizia!

Para o leitor contumaz, os livros são objetos valiosos, sagrados, verdadeiras relíquias católicas. De fato, o livro é simbolicamente uma relíquia católica. No mundo medieval, Deus revelou sua sabedoria à humanidade através de dois livros: a Bíblia e o mundo. Inclusive, sinto um ciúme doentio deles. Eu falo por mim mesmo. Prefiro presentear com um livro novo a emprestar um livro raro da minha biblioteca. Em parte há uma explicação: a relação do leitor com um livro é um caso de intimidade, de amor sincero. É como amar cegamente uma mulher. Quantas vezes não já dormi com um livro na mão? Quantas vezes esse estranho objeto não me distraiu? Muitos leitores simplesmente dormem com os livros na cama. É, em suma, um "affair" autêntico de amor sem sexo. O poeta John Milton, em seu livro Aeropagítica, achava crime maior queimar um livro do que queimar um ser humano.

É claro que nem todos os livros valem como relíquia. O que diferencia o mau leitor do bom leitor, além da qualidade própria de ler, é o livro que vai ler e a distinção que faz daquilo que vai ler. Há livros que valem ouro como há livros que não valem uma aspirina vencida. Há livros cujo conteúdo é sagrado, como há livros inúteis, que nada acrescentam. É certo que muitos livros bobos são feitos para nos distrair. No entanto, cabe ao bom leitor saber fazer as seguintes hierarquizações. Não se pode depreciar o que é superior e qualitativo e valorizar cobre como se fosse ouro.

Percebo em muitas pessoas a atração pelos livros de auto-ajuda. Como fala o ditado, se conselho fosse bom seria comprado. É justamente isso que é o livro de auto-ajuda: um conselho comprado. Porém, a grande maioria desses livros é enfadonha, cheia de clichês e frases feitas, que sugestiona o leitor a justamente não pensar. A fórmula do sucesso desses livros está precisamente nas suas generalidades, nas suas obviedades, e exploração rasteira da insegurança das pessoas. Os empresários e os homens de negócios são um dos seus mais vorazes consumidores. A competitividade, a incerteza do futuro, os riscos, o medo de perder, fazem com que os empresários procurem fórmulas prontas para o sucesso. Se alguns leitores acumulam livros por conhecimento, outros acumulam em busca de conselhos.

Sou terrivelmente impaciente, agitado. Quando vou esperar alguém ou aguardo atendimento na fila de um banco ou de um hospital, fico agoniado, quase beirando à doença, porque não há um livro em mãos. Minha cabeça fica agitada, os pensamentos borbulham, as mãos fazem reviravoltas, agoniado que me vejo ao não ler nada e ficar estatelado num canto. Estar sem um livro, esperando o nada, é como perder tempos preciosos da minha vida. A vida é curta demais para o leitor.


O leitor compra pilhas e mais pilhas de livros, como se estocasse conhecimento. É como se a falta daquele livro retirasse um pouco do seu cérebro, um pouco do seu saber. No mais, dá até dor de cabeça, porque a busca da leitura tem algo angustiante, que é a curiosidade mórbida. O leitor procura respostas pra tudo. E quanto mais compra livros, mais ele se sente confortável em tê-los, ainda que não consiga ler todos eles de uma vez. É provável que nunca leia todos os livros adquiridos durante sua vida. Porém, aquele objeto de culto está lá, inerte, disponível para qualquer hora de seu tempo. E a sua presença conforta, porque dá uma sensação de ter conhecimento.

Nunca fui fã de bibliotecas públicas. Não as condeno, as pessoas sem dinheiro precisam ler. Porém, necessito sentir-me dono do livro e do tempo. Odeio ter prazo para ler, prazo para entregar livros. A leitura tem que ser livre, despreocupada. Se bem que minha leitura é muito devagar, assistemática, indisciplinada. Às vezes pego um livro, enfastio-me, paro na página lida e pegou outro, até o assunto me chamar a atenção. Depende muito da minha concentração e do meu momento. Há livros que prendem de tal forma a atenção da pessoa, que o leitor fica eletrizado e páginas vão embora, tais como os ventos, em poucos segundos. Por outro lado, há páginas que nos fazem refletir, e como num atoleiro, passamos minutos ou horas para decifrar uma página ou um capítulo, tais são os esforços psíquicos exigidos. Alguns leitores, inclusive, fazem anotações e mais anotações na margem da página, para memorizar o que leu. Isso me lembra muito Schopenhauer, quando fazia anotações nos livros de sua biblioteca. E o objeto de ódio era sempre Hegel, um “charlatão”, “destruidor de papeis e mentes”, nas suas ásperas palavras. Os seus rascunhos revelam um incrível senso de humor e sarcasmo. Em um dos livros do filósofo de Jena, Schopenhauer faz a seguinte anotação de um trecho da obra; coloca duas orelhas de burro ao lado da margem da página e registra, debochando:- Que besteira! Eu mesmo não sou fã desse expediente. Não gosto de danificar o livro. Talvez eu confie demais na minha memória.

Há quem diga que os livros tiram alguém da realidade. Isso não é completamente verdadeiro. É certo que os leitores, em geral, são avoados e parecem situados em outro mundo, de preferência, no além. Porém, isso também é um erro. O livro é um portal que nos abre a uma realidade muitas vezes incognoscível, difícil de ser compreendida de forma empírica. Em outras palavras, quando se lê um romance ou mesmo um livro de história, o leitor está se deparando com uma dimensão da realidade, ainda que seja fictícia ou passada. A literatura pode ter uma dimensão fantasiosa. Entretanto, suas histórias, de alguma forma, retratam algo que existe na realidade, ainda que de forma surreal. Há muitas coisas na vida que não podem ser compreendidas cartesianamente. E no caso de história, são épocas que fogem à nossa mentalidade, com costumes, pensamentos, valores, expressões e realidades totalmente diferentes da nossa. A diferença, por assim dizer, é que o romance é verdadeiro, existiu de fato.

Por vezes, a história é também surrealista. Quando nos deparamos com determinados personagens históricos reais, parece que algo foi tirado de alguma mente engenhosa e criadora. A bíblia nos diz “verbo caro factum est” (e o verbo se fez carne). Deus criou o mundo com as palavras e Jesus Cristo foi o Verbo encarnado nas profecias das Escrituras. É provável que Deus seja o literato mais surrealista que existe. Se bem que a maldade humana, ilimitada, também surrealista, encarna perfeitamente em certos personagens que saíram de alguma psicologia doentia e desafia completamente nossa imaginação. Talvez seja o diabo escrevendo sua parte do personagem chamado o homem. Para quem inventou a grandeza da civilização ou a torpeza dos campos de concentração, a história humana é, acima de tudo, literatura, insuperável, desafiadora até para a alma do mais criativo artista. Se bem que para reinventar o bem e o mal, deve ser um tipo artista.

Os livros me ajudam nessa empreitada. Talvez seja minha espécie de fuga da realidade. Sim, nos livros há outras realidades. Eles dispersam minha alma de um cotidiano que me parece tacanho, monótono, por vezes triste. Mas eu não fujo propriamente da realidade: apenas amplio a capacidade de vê-la mais além. Quando meditamos o real, vemos apenas aquilo que nos condiz na vida cotidiana, trivial. O essencial é invisível aos olhos, já dizia Saint-Exupéry. Quando Cristovão Colombo quis descobrir novas terras, provavelmente olhava para os horizontes da Espanha e pensava, consigo mesmo, quantos mares e quantos povos haveriam de ser descobertos além daqueles povoados que via. Ele sabia que o mundo era mais além. Ele conseguiu compartilhar esse sonho com a Rainha Isabel, a Católica, que era uma mulher que também compartilhava de seus devaneios, ainda que imperiais, perto dos céticos da corte e do próprio Rei Fernando de Aragão. Se fosse apenas um homem “pragmático”, trivial, preso aos esquemas do cotidiano, Colombo jamais sairia de um bairro da Espanha. Seria apenas um homem comum, como a maioria dos espanhóis daqueles tempos. Quem poderia imaginar, por exemplo, que Bethoveen comporia, surdo, suas sinfonias? O leitor é um navegante singrando os mares das palavras. É alguém que tenta ouvir a sinfonia da vida sem escutar nada.


Há aqueles que vivenciam a realidade dos livros. As mulheres choram copiosamente quando lêem romances. E os homens se apaixonam pelos personagens ou vivem aventuras. Os leitores vivenciam um drama, são personagens do próprio drama que lêem. Em alguns casos chegam a cometer casos extremos. No final do século XVIII, quando Goethe inaugurou uma fase do romantismo alemão, ao publicar o livro sobre as agruras amorosas do jovem Werther, que se apaixona pela mulher noiva de outro, muita gente se encantou com a obra. Muitos leitores levaram tanto a sério o desenrolar do romance, que seguindo o destino trágico do personagem, cometeram suicídio. Foi preciso o próprio escritor e poeta alemão pedir aos leitores que não fizessem isso. Atualmente, as mulheres que choram lendo romances parecem ser raras. E, provavelmente, ninguém se matará lendo o Jovem Werther. Talvez até o leitor genuíno seja raro. . .

É verdade que o leitor pode enlouquecer, já que pode inventar um mundinho paralelo e escapar da realidade. É obrigação de qualquer pessoa sensata saber a dimensão da realidade e do ideal e não cabe sacrificar o que vivemos pelos esquemas artificiais e perigosos das idéias, ideologias e idealizações. Homens não são idéias, são seres de carne e osso. As idéias servem para compreender o mundo, não para distorcê-lo. Todavia, quem se limita apenas ao seu cotidiano, está preso no tempo e no espaço, não consegue ver mais além. O homem puramente prático acaba se limitando ao que vive e esquecendo que a realidade é muito mais além.

O leitor pode ser uma criatura esquisita. Pode falar disparates ou parecer estranho vindo de Marte. Ou mesmo até um individualista esquisito e egocêntrico. Porém, seu mundo se expande a partir das palavras de um livro. Abri-lo é entrar em outra dimensão.

Escrever. . .

Escrever parece ser um ato de necessidade de certos espíritos, certa compulsão. Clarice Lispector dizia que escrever era perigoso. Talvez a escrita mostrasse coisas estranhas, ocultas. De fato, às vezes me pergunto o que me motiva a escrever. Há uma energia que compele a ter necessidade de falar alguma coisa, uma força incontrolável que sufoca, naufraga em rebuliços. Os pensamentos me afogam e não me deixam em paz. Perco algumas madrugadas neste estranho incômodo e meu sono é roubado. É como se o pensamento quisesse me revelar alguma coisa, do nada. As indagações, as perguntas, as interrogações e as exclamações me surgem como se fossem uma revelação misteriosa da alma. E só me resta escrever, até que a alma descanse e solte o peso entorpecido dos pensamentos.

O papel, as palavras, parecem concretizar essas energias. Estas se tornam palpáveis. E as idéias, que outrora eram apenas forças abstratas, são visíveis, ao menos, na palavra. Se eu não obedeço a essa força de escrever, arrependo-me, porque elas vão embora da cabeça e toda a magia se perde junto. É algo que pede liberação e cujo descumprimento é frustrante. Quantas vezes nem liguei para esse chamado, tentava lembrar dos meus pensamentos e eles todos se perderam? É compreensível que certos escritores, em momentos inesperados, levassem um caderninho de notas para captar a hora incerta de seus próprios pensamentos. Por ora, há situações que produzem esses pensamentos: um incidente de menor tamanho, uma conversa de bar, um comentário tosco de alguém na rua, enfim, tudo isso pode estimular essa compulsão estranha de escrever. Até o mau humor inspira escritores. Dizem que Voltaire, em três dias, de pleno mau humor, escreveu um famoso conto satírico (embora ele escrevesse suas sátiras rindo horrores de seus inimigos espumando de raiva). Balzac era um escritor tão fanatizado, que não o tiravam nem mesmo para almoçar. Deixou volumes de romances. Miguel de Cervantes escreveu o Dom Quixote na cadeia. E nos deu a imagem do cavaleiro de triste figura. . .

Falei de romances. . .infelizmente nunca escrevi um, embora algumas histórias tenham surgido na minha cabeça. Cheguei a escrever o primeiro capítulo da minha história. Era um cavaleiro espanhol que confessava seus pecados a um frade português, em pleno inicio do século XVII. O pano de fundo das confissões seria a desenrolar da história. O problema é que o pensamento, traiçoeiro me escapou da cabeça. Tenho aquela idéia fixa de que se alguém deve escrever uma história, não deve contar a história pela história. Há de ter uma lição moral nos personagens e no enredo, uma personificação simbólica de uma mensagem produtiva. Ela tem de ser convincente, sem clichês. No entanto, só o primeiro capitulo parece que convenceu. Se é que convenceu mesmo, pois eu mesmo gostei! Lembro que li para um amigo o primeiro capítulo. Ele gostou. Menos mal. . .

Por uma época fui poeta. Certos tipos adolescentes costumam ser amorosos, românticos, cheios daquelas sensações do mal do século XIX. Eu fui um deles. O medievalismo contagiava minha cabeça. Acreditava-me o cavaleiro de armadura e escudo, relacionando o ritual do amor com a morte. Usava pseudônimos estranhos. Pergunto-me qual o sentido dessa relação, já que se uma coisa é o esplendor da criatividade, a outra é a destruição? É o sentimento que dá o amor: uma morte interior quando se decepciona. E escrevia compulsivamente poesia. Se o pensamento incomoda, que dirá o sentimento?! A imagem da mulher amada não me deixava dormir. Ela era simplesmente totalizante, um assombro devastador. Houve épocas em que tive a necessidade de escrever cartas para minhas damas. Em um desses “affairs”, cheguei a escrever mais de 20. Porém, parece que as mulheres já perderam o amor pelas palavras escritas. Muitas delas acham o expediente burocrático, cansativo. Têm preguiça de ler. Todavia, quando parei de escrever, algumas reclamaram. Talvez estivessem mal acostumadas. . .e eu tivesse perdido a inspiração.

Minha compulsão é com a realidade. No meu silêncio, observo as pessoas. Reconheço, sou uma figura relativamente estranha: se por um lado, pareço comunicativo, por outro, sou dominado por uma timidez imperiosa. É como se eu me comunicasse com as pessoas, mas, ao mesmo tempo, não tivesse a menor noção de estar lá, como se encontrasse deslocado do meio. Já me senti várias vezes assim. E a solução é observar pessoas, gestos e idéias. Como não poderia deixar de ser, isso acaba me insuflando idéias. Há quem diga que a mente desocupada é o terreno do diabo. Esse é o problema, ela me ocupa sempre, exaurindo-me. E aí surgem meus escritos.

Não sei por que escrevo. Um amigo meu me dizia que eu poderia ter a inspiração do profeta, influenciar pessoas. Talvez Deus tenha me dado uma missão. Contudo, jamais ouso falar em nome Dele. Quem sou eu para me sacralizar? Eu falo apenas por minhas idéias. Deus apenas as ilumina. Ou, ao menos, peço iluminação Dele.